Dr. Liberdade: conheça a história do advogado goiano considerado herói anônimo na ditadura militar

Artigo de Malú Longo

Dr. Liberdade: conheça a história do advogado goiano considerado herói anônimo na ditadura militar

Rômulo Gonçalves teria completado 101 anos no último mês de julho.

Os recentes ataques do presidente Jair Bolsonaro à Comissão Nacional da Verdade (CNV) trazem à tona o papel do aguerrido advogado goiano Rômulo Gonçalves, que teria feito 101 anos no último mês de julho. Ele morreu com 90 anos, em 2008, deixando para a história um legado de coragem em nome da livre manifestação de opinião. Muito do que fez está no registro da CNV.

Ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – seção Goiás entre 1961 e 1966, e patrono da cadeira 15 da Academia Goiana de Direito, Rômulo Gonçalves não mediu esforços nem bravura para defender estudantes e profissionais liberais que se posicionavam contra o regime militar em mais de duas décadas da vida brasileira. Pelo seu destemor ficou conhecido como Dr. Liberdade.

Familiares, amigos e pessoas defendidas por Rômulo Gonçalves lutam para manter viva a sua trajetória. “Ele deixou um legado de solidariedade, coragem e amor ao próximo, principalmente em um dos momentos mais tenebrosos da história política do País”, afirma o filho Wagner Gonçalves, procurador da República aposentado e ex- membro da CNV. Apaixonado pelo caminho trilhado pelo pai, ele batalha para que sua história não seja esquecida. Uma de suas ofensivas é a inclusão no Armazém Memória, sítio de construção coletiva na internet para preservar a memória histórica do País, informações sobre o advogado goiano.

No endereço virtual, que pode ser acessado pelo Facebook, Wagner Gonçalves incluiu um artigo do pai escrito em 1940 quando Rômulo Gonçalves tinha apenas 22 anos. O artigo “revela as inquietudes que o acompanharam por toda vida profissional e não o deixaram sucumbir e mudar seu caminho de construção dos direitos humanos”, escreve o filho. Rômulo Gonçalves, na Catalão natal, encerra o artigo Grande Quimera Humana no qual questiona a profusão de leis a serviço da Justiça com a frase: “A verdade é que no mundo não pode haver justiça perfeita. Os espalhafatos dos decretos e dos códigos só servem para empalhar a realidade e o espírito do povo.”

Os estudos iniciais de Rômulo Gonçalves foram em Catalão e na mineira Araguari. Depois estudou no Ginásio Arquidiocesano Anchieta, em Bonfim, hoje Silvânia (GO). Depois de voltar a Catalão, onde foi secretário municipal e professor, estudou Direito em Goiânia nos anos 1940. Na capital desenhou sua marca de luta pela justiça na administração municipal, convidado pelo prefeito Venerando de Freitas Borges, no magistério no Lyceu de Goiânia, mas essencialmente como advogado.

Eleito vereador na capital, Rômulo Gonçalves renunciou por discordar da remuneração ao cargo. Por três vezes consecutivas presidiu a OAB-GO, entre 1961 e 1966, num dos períodos mais conturbados da história política brasileira, com a entrada em vigor do regime militar. Em 1964, uma grande parcela da sociedade civil e instituições organizadas, entre elas a OAB, apoiou a deposição do presidente eleito João Goulart que anunciava reformas substanciais.

Habeas corpus

No dia 20 de março de 1964, em sessão extraordinária, a OAB nacional deu o seu veredicto sobre as mudanças em curso. “A euforia transborda das páginas da ata que registrou o encontro. A euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras (…), o então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB, Carlos Povina Cavalcanti, orgulhoso, se dizia ‘em paz com a nossa consciência’, escreveu a historiadora Denise Rollemberg no artigo Memória, Opinião e Cultura Política.

Mas em junho do mesmo ano a OAB começa a mudar de posição ao decidir que os advogados com os direitos políticos suspensos pelo governo militar não estavam impedidos de exercer a profissão. A instituição tornou-se ainda mais crítica quando atos de violência contra advogados passaram a ser relatados. Então presidente da seccional da Ordem em Goiás, Rômulo Gonçalves foi desacatado ao tentar cumprir um habeas corpus concedido em favor de um colega. O episódio foi citado em sessão da OAB nacional em outubro de 1964 levando a instituição a se manifestar sistematicamente contra as violências e arbitrariedades praticadas pelos militares.

Por duas vezes Rômulo Gonçalves foi indicado em lista tríplice, pelo quinto constitucional, a uma vaga no Tribunal de Justiça de Goiás. Alvo de Inquéritos Policiais Militares (IPMs), não foi escolhido para se tornar desembargador. Incansável, ele percorria longos caminhos na defesa de presos políticos, como idas frequentes a Juiz de Fora (MG), sede da 4ª Auditoria Militar; ao Rio de Janeiro, onde impetrava recurso no STM; e à Brasília para novos recursos ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Dele ficou célebre a frase proferida ao ser cumprimentado pelo ministro Evandro Lins e Silva, após um julgamento no STF de habeas corpus único que possibilitou a libertação de 60 pessoas acusadas de insubordinação contra o regime militar. “Não é mérito da defesa, mas demérito da acusação.”

Franzino, mas um guerreiro

O escritório de Rômulo Gonçalves na Rua 6, no Centro de Goiânia, era, segundo o filho, “um recanto de esperança e liberdade”. Famílias em desespero à procura dos filhos presos e incomunicáveis, muitos sob tortura, iam ali certas de que encontrariam amparo e esperança jurídica. A jornalista Laurenice Noleto Alves, a Nonô, em seu livro Flores no Quintal, fala da importância do advogado na libertação do marido, o também jornalista Wilmar Alves, preso político em 1972. “Poucos advogados tinham coragem de correr o risco de representar um preso político. Em Goiás, talvez, só um herói: Dr. Rômulo Gonçalves.”

Para Valterli Guedes, presidente da Associação Goiana de Imprensa, Rômulo Gonçalves foi um exemplo de advogado. “Lutou em defesa do ser humano. Bateu às portas do judiciário e dos quartéis. Foi aos cartórios documentar atrocidades. Sem medo.” Por ocasião de sua morte, em novembro de 2008, o colega Eladyr Pimentel lembrou que a aparência franzina de Rômulo Gonçalves escondia um guerreiro. “Nas audiências e na tribuna arrebatava a atenção de todos. Sua fala se equiparava ao cantar dos tenores, não falava somente o que os juízes gostariam de ouvir, falava o que os juízes tinham que saber.”

Em 2012, o filho Wagner publicou o artigo Ditadura Militar de 64 intervém em Goiás, história de um herói anônimo na defesa dos estudantes e presos políticos numa edição especial da Revista Internacional de Direito e Cidadania (Reid) em homenagem ao advogado. No texto estão casos de violência contra estudantes universitários goianos e os argumentos usados pelo advogado ao defendê-los. Centenas de habeas corpus foram impetrados nesse histórico de resistência.

Rômulo Gonçalves foi um dos 45 advogados homenageados em 2012 pela OAB em parceria com a Câmara dos Deputados “pelos serviços prestados na defesa de presos e perseguidos políticos na ditadura militar”. 

O advogado foi casado com Maria Luiza Crispim Gonçalves, morta em 2011. Com ela teve os filhos Alberto Crispim Gonçalves (advogado); Wagner Gonçalves (procurador da República, aposentado); Mércia Gonçalves, morta em 2019; Hélio Gonçalves (médico); e Rômulo Gonçalves Júnior (advogado). O casal adotou a sobrinha Maria Terezinha.

FONTE: jornal O Popular – https://www.opopular.com.br/noticias/cidades/dr-liberdade-conhe%C3%A7a-a-hist%C3%B3ria-do-advogado-goiano-considerado-her%C3%B3i-an%C3%B4nimo-na-ditadura-militar-1.1856057

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