Marcantônio Dela Corte – Historiador e Anistiado Político

RÔMULO GONÇALVES 

Mais importante na vida é andar, trilhar o caminho da paz, sendo justo, benevolente, solidário para com todos e, em qualquer situação, mesmo aquelas que nos aborrecem, nos ofendem e nos levam até a perder a razão, nos mantermos firmes. Como dizia Gandhi, “o caminho da paz é a paz”. Conheci um ser humano que sempre andou nessa direção e nos deixou um importante legado de coragem, de justiça e honradez. Rômulo Gonçalves, advogado, em momentos difíceis na história deste país sempre esteve presente protegendo aqueles, principalmente jovens, que sofriam o peso das prisões políticas.

Há mais de cinquenta anos, final de 1967, um punhado de jovens, que, lembrando o poeta Castro Alves com o seu verso “a praça, a praça é do povo como o céu é do condor”, criava uma pequena organização contra a ditadura, o Grupo Condor, que tinha como objetivo não a luta armada, mas denunciar as arbitrariedades praticadas pela ditadura militar.

A primeira e única ação foi a elaboração de um manifesto que denunciava a venda de grandes extensões de terras a agentes norte-americanos e a esterilização de mulheres no norte e nordeste do país. Esse grupo de aproximadamente 15 pessoas achou que seria mais seguro fazer essa distribuição à noite, de dois em dois, colocando os boletins debaixo das portas de comércio e nas casas. Assim foi feito.

Eu e o Juarez Ferraz de Maia ficamos responsáveis pela distribuição do manifesto na parte norte de Goiânia, que compreende o antigo Bairro Popular. Já passava das 22 horas e tudo ia transcorrendo bem. Já havíamos colocado debaixo das portas mais da metade dos boletins quando, de repente, um carro da polícia aparece e nos aborda. Aqueles documentos foram considerados subversivos e atentavam contra a segurança nacional.

Sempre que essa história me vem à memória, automaticamente eu me lembro do advogado Rômulo Gonçalves. Fomos levados em flagrante para a Casa de Detenção, que ficava na rua 66, esquina com a Avenida Independência. Era um estabelecimento para presos comuns e estava extremamente lotado, em péssimas condições de higiene e com maus tratos de toda espécie. 

Fomos presos por volta das 23 horas e, no outro dia, nos conduziram à sala de um delegado de polícia. Ele olhou o manifesto, começou a ler e disse perante nós que tudo estava certo. Continuou lendo e dizendo que concordava com o que estava escrito. Mas havia outras pessoas na sala. Tanto eu como o Juarez falamos e insistimos: “então nos solte”. E ele dizia: “não, eu tenho que informar à Polícia Federal”. E, na nossa frente, telefonou e falou com o delegado Jesus Lisboa, que já nos conhecia. Éramos reincidentes.

Eu e o Juarez, antes de sermos levados para a sede da Polícia Federal, bolamos uma história e demos o nome de  Gilbertinho ao personagem fictício que nos procurou para ajudar a distribuir o manifesto. Foi uma história bem contada.

Naquele mesmo dia fomos levados para sede da Polícia Federal, que ficava na Rua 2, esquina com a Avenida Goiás. Tanto o meu depoimento como o do Juarez foram tomados pelo delegado da polícia federal Jesus Lisboa e pelo tenente Bandeira, que, na época, já era conhecido pela imprensa nacional como torturador. É bom lembrar que em 1967 havia poucos presos políticos no País.

Nesse depoimento ambos faziam perguntas, ameaças,  mas não houve tortura. O que me deixou intrigado foi o desabafo feito pelo Tenente Bandeira, o qual se dirigiu a mim com o semblante carregado e disse “que lamentava muito não poder fazer o que queria”. Naquela época, em 1967, eram poucos os casos de tortura no País (é bom esclarecer que os presos comuns neste país sempre foram torturados de forma sistemática). Completando a história: esse militar era de pouca conversa e violento. Não sei exatamente o ano, mas esse senhor, quando começou o processo de abertura do regime, trabalhava no sistema de segurança do Clube Jaó, em Goiânia.

Pelo que foi amplamente divulgado pela imprensa, certa noite um cidadão sócio do Clube estava bêbado e incomodando os demais. O Tenente Bandeira o abordou e o colocou para fora com violência. E ele, o bêbado, foi saindo e o Bandeira o maltratando até chegarem ao carro. Inesperadamente, ele abre a porta, entra no carro, pega a arma e o mata. O militar, tão experiente, subestimou o cidadão que não estava tão bêbado assim e colocou um ponto final na sua vida. Mas nada justifica tirar a vida do outro.

Ficamos por volta de 40 dias presos até que alguém nos defendesse. Naquela época, o instituto do habeas corpus estava em vigor. Mais tarde, final de 1968, o governo militar impõe ao país o Ato Institucional número 5 (AI-5), anulando por completo qualquer resquício de democracia. 

Reincidentes que éramos de ações políticas contra o governo militar, teríamos o nosso flagrante quebrado e a nossa liberdade resguardada? Sim! Tudo começou quando, numa manhã, um senhor de meia idade apareceu em nossa cela. Eu não o conhecia. Era o advogado Rômulo Gonçalves. Um senhor de jeito simples no falar, com um semblante calmo e uma generosidade que nunca tinha visto. Naqueles momentos ele nos explicou tudo e nos informou que já tinha visto o nosso processo e que ficássemos tranquilos porque ele ia, dentro do que a lei permite, fazer o possível para que saíssemos dali. 

Ainda nos afirmou que o manifesto, a principal prova que sustentava a nossa prisão em flagrante, seria, também, a prova de que ali não havia crime. Informou-nos, inclusive, que um amigo seu, que trabalhava na Auditoria da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, Minas Gerais, viria a Goiânia em breve e iria nos visitar (naquela época o Estado de Goiás fazia parte da 4ª Região Militar. Todas as ações, todas as atividades políticas que os militares considerassem subversivas e contra o governo seriam enquadradas na Lei de Segurança Nacional e julgadas por uma corte militar). 

Doutor Rômulo, com toda aquela calma e cuidado para conosco, disse que informaria e esclareceria esse senhor sobre a nossa prisão e que tudo daria certo. Despediu-se e disse que voltaria. Alguns dias depois ele nos fez outra visita, agora com a pessoa, amigo dele, que trabalhava na Auditoria. Foram momentos inesquecíveis! A forma carinhosa como nos tratava está para sempre gravada em minha memória. Eles estavam ali sendo solidários e se arriscando, mas nos enchendo de esperança e demonstrando que não estávamos sozinhos.

Naquele dia a guarda do presídio (casa de detenção) abriu a cela para que o Dr. Rômulo e o seu acompanhante ficassem à vontade. São momentos que ficam na memória e, quando eles saíram, eu e o Juarez tínhamos a certeza de que logo estaríamos soltos. Após uma semana, com o sol já indo embora, apareceu o delegado da Polícia Federal Jesus Lisboa e nos informou que estávamos livres e que o flagrante foi quebrado. O que aconteceu: as ações do Dr. Rômulo foram precisas, inteligentes e generosas para conosco. O Juiz da quarta região militar foi tocado pelo senhor que aqui esteve, que, por sua vez, foi sensibilizado pelo Dr. Rômulo Gonçalves. 

Já se passaram cinco décadas e aqui estamos presentes. O doutor Rômulo Gonçalves fez a sua caminhada neste mundo deixando um rastro de dignidade, amor ao próximo e muita solidariedade. São ingredientes próprios daqueles que têm o outro como irmão, como parceiro de uma caminhada que nos torna mais humanos e faz deste mundo um lugar melhor para viver. São inúmeros os companheiros, presos políticos e familiares que foram generosamente atendidos pelo doutor Rômulo Gonçalves. Nós o reverenciamos e somos-lhe eternamente gratos pela sua coragem e empatia para conosco.  

 

 

Marcantônio Dela Côrte 

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